Artur Bual Gostaria de, em alguns instantes daquele tempo cronológico que nos devora, evocar algo que está intrinsecamente ligado – em comunhão profunda e inseparável – àquele tempo sem tempo, o tempo kairológico. O tempo da felicidade indizível, da alegria verdadeira e perene – inebriante e tenebrosa, de êxtase e angústia. Aquele tempo do calor ofuscante, em que se saboreia a seiva da vida; o tempo do não-tempo, do eterno. Refiro-me à amizade. Amizade. Aquilo que é mais do que sentimento, que nos permite tactear as paredes do infinito, tão infinitamente próximo; que nos inebria com o latejar síntone e nos faz roçar a transcendência. A amizade não se prepara, não se programa, não se justifica, não se explica. Vive-se, simplesmente, no seu excesso, como um afago e um respiro. A amizade não se acomoda. Incomoda. “O Amigo é aquele que tem o direito de incomodar o Amigo”, dizia o Artur Bual. Conheci o Artur Bual há mais de 2 anos, quando eu vivia em Leiria e organizava uma exposição numa galeria que já não existe. Deu-se essa transcendência do nosso encontro num restaurante do Bairro Alto, em Lisboa. Ao longo dos anos, fomos convivendo e deslizando pelo tempo, entre Kronos e Kairos. Passámos muitas horas, até às 3 ou 4 da madrugada, saboreando a omelete que a Guilhermina preparara para nós antes de se deitar. Guilhermina, essa grande mulher, essa grande esposa e companheira, que era parte tão significativa do Artur! Saboreávamos a omelete e falávamos em surdina, pois a Guilhermina dormia no quarto contíguo. Sobre que é que falávamos? Sobre a vida. Experimentando, no meio dos relâmpagos de limpidez e transparência, a ansiedade tenebrosa de não podermos dizer o indizível. A transcendência. O Além. O sabor de uma angustiante esperança e de uma esperançosa angústia, que ele tão bem exprimia nos seus Cristos. Eram tempos de sonho e de busca. Como continuam a ser. Recordo bem a primeira de muitas vezes que pernoitei no seu atelier. Os quadros falavam-me 38 Bual