62 Bual O Adeus a Bual Artur Bual partiu e deixou-nos bem mais sós. Morreu em sua casa, em família, algumas horas depois de ter tomado um chá. Diriam os antropólogos que morreu de “boa morte”, por oposição às que o não são, isto é, às mortes violentas, fora da sua idade — o caso da morte das crianças, em terra estrangeira ou ”infiel”, como foi o caso da morte do rei, o ”Encoberto”, pelo qual os portugueses ainda parecem esperar. Pessoalmente, contínuo a pensar que a morte é má, seja qual for o seu estatuto, embora ela seja condição da própria vida. Daí o paradoxo. Daí que a vida seja, de certo modo, o paradoxo lúcido. Bual partiu e, aparentemente, estava bem. Como se nos quisesse deixar o aviso desta nossa humana e precária condição, desta nossa precária e aleatória fisiologia. Ainda na véspera ele tinha conversado telefonicamente com Eduardo Nascimento, a alimentar projectos e ideias, tinha-se disponibilizado inclusivé a patrocinar a exposição do ”Grupo de Espinho” nos espaços da Câmara Municipal da Amadora — para logo morrer no dia seguinte. Estava bem. aparente mente, porquanto Artur Bual parecia sentir, nestes últimos meses, de acordo com o sentimento de alguns amigos mais próximos, algum desfalecimento, algo que o corpo, essa humana condição, não acompanhava tão bem quanto antes, a energia criadora que era habitualmente a sua maneira de estar na vida. E foi a a enterrar, aos 2 anos de idade, dia 11 de janeiro de 1999, no cemitério da Amadora, lá o fomos acompanhar à última morada. Numa tarde cinzenta e fria, de invernia brava, chuva coriácea, ventania e frio. Essa foi talvez a sua última tela, violenta como a vida, nunca acomodada, incómoda e terna, ao mesmo tempo, como a sua pintura. Uma tarde assim, mas que não foi desertada por todos aqueles que lhe quiseram dar o último adeus. Alguém lhe pôs no caixão, para a viagem, tintas e alguns pincéis, para que não lhe faltasse a ferramenta nessas outras paragens. Artur Bual morreu jovem, aos 1 anos, dizia, na força da criação e da procura, inquieto. Não estava reformado. Não se aposentou. Produzindo sempre. Para além da pintura, esse foi certa- mente o seu maior ensinamento, dirigido tanto aos mais jovens como a todos nós. O ensina- mento que é justamente quando envelhecemos que a vida pode não só continuar, mas sim enriquecer-se, no esforço criativo, numa sabedoria que a distanciação dos anos percorridos permite melhor e doutro modo entender. Como se uma outra consciência da vida só começasse tarde, cronologicamente tarde, inseparável duma mais aguda consiência da morte, na contagem decrescente. Na homília a Artur Bual, na igreja da Amadora, o orador, procurou conciliar a arte de Bual, martirizada, com o Deus dos católicos, não sem habilidade, ao invocar ”a beleza secreta da Arte, que não está na Natureza”, ao referir esse “olhar para as coisas invisíveis”, que seria comum ao